gitana



meus passos não te serão
leves
nem meus saltos
nem mesmo quando levito,
ou ergo as mãos, danço e canto
sem acompanhamento


pelo ângulo certo, porém,
verás meu coração nos abetos,
os pássaros rasgarem azuis
e amanhecerem os meus beijos
vermelhos



sizígia



o céu insiste
nessas cores de maçã
mordida
depois me anoitece
e me despe das luas
em três de minhas
fases


do meu olhar tardio
cheias e vazantes
se derramam
como preces



renascença



sob a chuva meus olhos
revelam a luz nas cores
das horas lúcidas

reflexos de deuses estrondosos
em minhas memórias

livres de marquises
meus pés dissipam o asfalto
e a nostalgia ressurge
ríspida e imprevista
em incessantes fluxos
na paisagem úmida

improvisada

a vida vaza nas esquinas
de um cruzamento abstrato
constantemente renovado
pelas águas que correm
junto ao meio fio da lâmina
das minhas palavras
e de nossos atos

e nesse ar concreto
onde me encontro
tudo sufoca
tudo é ralo

há dramas contidos no meu corpo
derramado e exposto
na calçada




Publicado no Balaio Porreta 1986 nº 2802.

cálice

Para Adriana Sunyata


da nossa entrega cotidiana
àqueles deuses embriagados
e aos casulos de borboletas


às folhas que caíram
e aos raios de luz
na penumbra dos sonhos


às nossas intenções aladas
e a tudo que era aveludado
vermelho e sanguíneo
como mosto
ou como vinho


só me resta um vazio
num cálice cheio
de poesias caladas




* Publicado no Balaio Porreta 1986 nº 2825

ânima



por uma brecha do meu sono
você sopra toda essa tinta
pra pintar na minha cara
insetos
átomos
cantos e contos
dos seus quintais
incalculáveis


tudo cabe na tela absoluta
e branca
tudo cabe
e outros tons insurgem


penso em você
parcialmente um
em todos os fragmentos reunidos
- unânime
e escrevo até o último segmento
cada passo dessa incerta dança






* Publicado no Balaio Porreta 1986 nº 2772

imanente



desprendido de chãos e de céus
esse louco que nos habita
encara todos os precipícios
e remove-nos as pontes
que levariam a anfitriãs certezas


e em saltos incalculados
nesses vãos entre nadas e nós
hospeda em nossos abismos
a nudez com que nos entrega
a toda sorte de perigos



vertigem



a ausência da rosa na boca
o silêncio alarmado
de quem sabe espinhos
e idas e beijos
e quases
e esses vermelhos
que te inflamam
toda
de abismos
e quedas




* Publicado no Balaio Porreta 1986 nº 2729

falando de lírios e de mim



eu queria inventar outras palavras
outras flores outras selvas outras árvores
e subir nos seus pés
e preparar ninhos e leitos
no mistério impenetrável e verde
das folhas impregnadas de sol...


queria inventar outras espécies
de algas e de corais e outros mares
cheios de perigos e coloridos abissais
e coisas de afundar mesmo a cabeça e nadar
e beijar a pele com gosto de sal e de líquen
nos nossos corpos úmidos graves e líricos...


queria chegar até você com sonhos
e com histórias
com cantigas de roda
bobagens e cílios
cheia de manha e de manhãs
e papoulas e desalinhos
cheia de mim e de lírios...


queria chegar até você
reinventada em outros trens.



bumerangue




meus versos retornam
sem cerimônias
ou pássaros


nunca houve urgência
no amor


mas a certeza
de que um dia
ele pousará
em minhas mãos



mosaico



era apenas em mim
que se encontrava
essa história, essa lenda
esse mito


era em mim apenas
que não se desmentia
o espectro de tantos gestos
e vozes e matizes
de outros tempos


era eu quem o absorvia
refletindo-me
em sua íris multifacetada


[num abraço
dispersa e absolvida]



tantras & ostras



às vezes tenho os sonhos
mais elementares
desses que envolvem
serpentes e ruas vazias
onde você sempre aparece
do nada no meio
de uma multidão invisível
e o chão desaparece
e eu voo
e toco o seu rosto
e você sorri
e gozamos juntos
todas as horas
dos nossos dias


outras vezes tenho os sonhos
mais elementares
desses que envolvem
mar e noites escuras
e acordo sozinha
fechada em mim






* Publicado no blog Nuvens sobre o Atlântico, de Cris Caetano

inconclusiva



nem sempre é sobre o olhar
que me atropela e não vê
as viagens e os trens
em minha cabeça


[ou o chão que falta
sob meus tremores]


nem sempre é sobre um par
de tênis preso nos fios elétricos
de onde pombos voam


nem sempre é sobre o que sei






* Publicado no Balaio Porreta 1986 nº 2667

o tom desse outono



palavras amarelas

palavras secas
palavras caídas
no meu solo
mudo


o silêncio frio
de um blues
mudo


apenas soul
in verno astral



kUBriCKiaNa



PEQUENO ESCLARECIMENTO

Os poetas não são azuis nem nada, como pensam alguns supersticiosos, nem sujeitos a ataques súbitos de levitação. O de que eles mais gostam é estar em silêncio - um silêncio que subjaz a quaisquer escapes motorísticos e declamatórios. Um silêncio... Este impoluível silêncio em que escrevo e em que tu me lês.


Mario Quintana




Poetas
não são laranjas nem nada!
[Palavras navegando em Mar
del Plata]

Desmecanizados, nos quantificamos

[qualificados] e escrevemos seguindo
a rota da poesia [e dos
silêncios].

Temos essa cosa

mucho loka
[dorada cosa]
que envolve a química
da sílaba beijando a língua
[da língua remoendo a boca]
dos dedos esfregando letras
dos ouvidos colorindo
mil tons [em mil sinos].

E de segunda a segundas intenções

dançamos ao som da nona
ou da quinta
ou de qualquer outra sinfonia
uníssonos

[como as feiras dos sábados e

domingos]

e nos disse QUINTANA

que nem somos azuis.




Adrianna Coelho e Marcelo Novaes

no campo mimado de um poeta elétrico



CAMPOS MIMADOS


poemas fora de
ardem
para Adrianna Coelho



* * *

pela tua poesia andei
agora pise com cuidado:
plantei para ti
campos
mimados.

* * *

o sol alpino
na cabeça
o frio nada valha.

* * *

nenhum verso
seguro.


solto:


palavras




explodem no ar!


* * *

o sol
laço
quando
sou só


luço.


* * *

quero terminar essa poesia tonta
mas dizer não é tão ruim
que quando me dou conta
estou perto do sim.

* * *

amor

o gavião cai
por águia
abaixo.




carito



por água abaixo [poesia incidental]



ainda estou aqui sem saber começar
porque não me acostumei com as metades
nem com os inteiros


quando me dou conta estou perto do fim
ou depois do meio [no meio de mim]
onde todos os caminhos se extinguem
e as pedras servem melhor aos estilingues


haja pulmão para tanto oxigênio
e hidrogênio quando falta o ar
na tentativa de vir à tona na hora errada


o sol a pino, o pino da granada,
a pressão, a queda
a verdade liquidada


[onde há campos minados
e nenhum verso seguro
ou se ouvem as explosões
ou apenas os soluços]



penalidade

para Rodrigo M. Freire


Ninguém escolheu,
muito menos eu,
mas assisti
a esse nascimento
inumano
sem saber que um deus
emergiria
assim de dentro de mim
lascivo, intenso,
faminto e nu...


Que depois do meu contato
mais íntimo e profano
me delataria
e minha pena seria
somente o sentir.


É por isso que agora
sinto muito.



Um poema de Georgio Rios

[Georgio Rios, inspirado no poema com os pés no chão]


Um pedaço de mim
é tudo


e em nada me dispersa
hei de dissipar as luzes
e novas luzes trazer
desta jornada.


hei de ficar
onde caminho encontrar
onde houver
tal caminho


aninharei meus pés
nas veredas
e nestas sendas
aquietarei em silêncio
escutando as águas
que vertem do mais
secreto caminho
da mais profunda vereda
e caminhando ouvir a música
dos olhos distantes



compondo sobre águas

[Paulo de Carvalho, sobre o poema okavango]


rio fêmea


quando fêmea;
águas e areias.


sou-te éden,
gênesis fruto.
o furto e
a fome


nomes de ti.


sacra ou profana, quem me sabe as sedes dos mares?
sei-te a carne, os sopros e teus verbos.


quando fêmea;
sou-te a folha,
papiro e tintas.


inversos de mim


oferto-me por areias aos êxodos de tuas águas;
consagro-me! aquela que te sabe os nomes nos sonos.


um poema de mim,
nomeia-te!






* Publicado no Balaio Porreta 1986 nº 2581

com os pés no chão



ando descalça pela tua casa
e atravesso os cômodos
sem as pontes que costuram
todos os caminhos


o chão, passivo, ninho
feito de referências e almofadas,
recolhe meu sono em travesseiro de penas
e abre teu peito ferido sobre minhas pernas


e as mãos deslizam sobre o tapete,
as faces, os corpos e as lágrimas


e os olhos que silenciam
interferem como lâminas


e ao chão, passiva, cheia
de interferências e joelhos
e rodapés e dores em todos os cantos,
entrego-me inteira no piso do banheiro


e meus sapatos, amor,
ficaram do lado de fora,
junto com o meu passado:
agora meus passos são outros
e ando descalça pela tua casa.





* Georgio Rios fez um lindo poema para mim
* Publicado na Diversos Afins - Revista Cultural Eletrônica

toda sorte de inventos

ao amigo que é o "extrato da sua abstração extrema
extravio extraditado na fronteira da invenção":
fernando cisco zappa




fernando inventa coisas
e conversa com elas
converte palavras
em pedras de rios
igarapés e florestas
chuvas e sóis


sempre o imagino
fazendo amor com a terra
ou com uma árvore
e sinto que ele é
incontestavelmente
antigo e indefinível
um menino índio
de alma cigana e africana
com toda gama de cores
que o matizam


[porque para mim
ele é colorido]


uma ruptura
dessas que abrem o peito
e que explodem sentidos


e depois ele ri
e subitamente quebra a rotina
sem rimas
quebra a expectativa
dos versos
e renova o silêncio
que se instaura em mim



quase um tango



que coisa mais latina
me chegar assim com tangos
com esse orange walking
com pratas e besos roubados
e com esse ar borgeano


que coisa mais ladina
esse teu olhar bajamar
que saca la paz dos meus dias
y me quita la noche y el sueño
quando me ofereces coca
e bebes um vinho chileno


que coisa mais romântica
quando me atacas na cama
antes fria e deserta
e me declamas um pablo
só para ter-me caliente


[sale un aroma de jazmín mojado
por el sudor, un ácido relente]


y yo pronuncio tu nombre
entre embargos y cochabamba
si no eres fidel yo te castro
encuanto enciendes um charuto
de havana







na voz de
Mercedes Lorenzo

para uma confissão

para Mercedes Lorenzo


que a palavra secreta se apresente,
aquela que me olha de longe
que me entende e me espreita,
por onde quer que eu ande...


aquela que sabe dos meus horários
e de tudo que coloco sob pedras,
debaixo do tapete, atrás das portas
e dos meus gestos corpóreos


aquela que encontra minhas identidades
guardadas a sete chaves na gaveta
cheia de poemas sibilinos


- a palavra-chave, testemunha,
aquela que me aponta, me acusa...


quando ela se declarar,
eu assino.



pálida



meus versos são vermelhos
e me chegam repentinos
aos olhos, às mãos, à boca


extenuam num instante
meus dilatados sentidos
e me absorvem inteira
ou despedaçada



para uma dança



gostaria de um homem verde
menino ainda
ou um homem verde e rosa
de alma mangueira


um homem que me tirasse
para as danças da chuva e do sol
e que gostasse de natureza


[mas tanto o sol como a chuva
mesmo sem esse homem
chegam a mim com tamanha beleza]


gostaria de um homem
para dançar
apenas






* Publicado no Balaio Porreta 1986 nº 2603

***** de língua: lambendo a poesia de mercedes lorenzo



Shlept



a língua bifurcada da serpente
prova dois gostos?
o que acontece
se eu lamber teu gesto?
gosto do susto
de pensar palavras salivas
incisivas in.surgentes
carnívoras
isso vai me inflorescendo
o resto



Mercedes Lorenzo





minha voz cariocando a shlept da mê:


* Publicado no Balaio Porreta 1986 nº 2564

olé



Ângulos vermelhos



Ângulos vermelhos
destacam o solo
flamenco do
violão,


o timbre do
flamenco.


E a bailarina está de
costas, a espanhola
ouvindo os arpejos.


Lá fora, voam os

passarinhos, em

ângulo

reto.



Marcelo Novaes






gitana



meus passos não te serão

leves

nem meus saltos


nem mesmo quando levito,

ou ergo as mãos, danço e canto

sem acompanhamento


pelo ângulo certo, porém,

verás meu coração nos abetos,

os pássaros rasgarem azuis

e amanhecerem os meus beijos

vermelhos




Adrianna Coelho




cálice e patena



talvez eu precise de você
a percorrer meu labirinto
sem novelo
a descobrir-me


de que você me possua
como quem faz
uma intinção


talvez eu precise perder
todos os sentidos
além dos cinco
e ser pagã


crer na indivisibilidade
e ser totalmente sua



sem ressalvas



eu não sabia que meu cabelo era agreste
e que refletiríamos em nossas íris
um ao outro – sobre o carpete –
e as cores dos crepúsculos
e das auroras...


nem sabia que poderia ter por horas
essa dança de águas nos olhos,
e esse sorriso na memória dos músculos
que me douraram a pele em nossa trança
de salivas e de silêncios...


e que me tornaria
ao mesmo tempo leve e densa,
com você profundamente dentro,
[em presença e ausência]
inteiro, unânime e múltiplo.






* Publicado no Balaio Porreta 1986 nº 2558

abscissa



o que me toca é a distância
e esse olhar mudo de retrato,
esse muro branco de dentes
de um sorriso concreto
flagrado como se fosse
um crime...


e esse gesto despojado de chaves
e de noites, sem eclipses
e sem apêndices, me redime
das palavras trancadas
nesse cofre surdo
com o segredo para novas cores
em um arco-íris exânime
e os mapas que me prometeram
levar para longe...


o que me toca é ponto equidistante
do que sou e do que sonho.



soneto para o desdito

Para Rodrigo M. Freire


Arranca-me de dentro a solidão,
a franca dor que me congela a alma
que mascarada de fingida calma
não revela mágoa nem aflição.


Ousa por mim ouvir a não-palavra,
resgata o gesto não insinuado,
desvenda meu coração grave e ávido
aprisionado nesta triste lavra.


Com verso profundo, forte e insurgente
livra-me do sofrimento silente,
derruba estas barreiras e chama-me.


Recobra-me esta emoção sepultada -
a verdade que em mim tenho encerrada.
Recria-me em vivo desejo e ama-me.



mergulho



na hora esquiva
das águas apurando
dias em ilhas alheias
ao sal me conservo
dentro dos ossos
experimentando
o nascimento de asas
translúcidas
e voo pássaro


o bico aponta
meu peito
e ronda meu corpo
mergulhado
em acasos
de peixes e sargaços


e eu
raramente em mim
concha adversa
me fecho
nessa mudez
que pesca o verso






* Publicado no blog Novidades & Velharias

nimbo



na minha terra
encharcada


há resquícios de chuva
nas fendas, pétalas
e corolas


até quando as gotas
cairão das folhas
e as pedras ficarão
úmidas?


quando é que a palavra
estia?






* Publicado no Balaio Porreta 1986 nº 2547

planisfério



ao me olhar no espelho
plano
há uma imagem – minha –
que flutua
que não se pensa:
plana
leve como pluma
há uma dimensão – minha –
não refletida
que me absorve e me
adivinha
plena



camelos e outras esferas (medo medo medo mídia mídia)



ali mentes alinham-se
e alimentam-se
de contingentes rumores
de contidas gentes que vivem sós
(agrupadamente)


tabloides são todos
que todos se mentem sob as antenas


sobre nossas cabeças
e sobre o cimento incerto
alguma coisa anda desordenadamente
dando de comer às feras


e nesse ato de DomEsticar
]eENCOLHERoQueSomos[
maldosamente molda-nos a mente
e a noosfera


e nos ferirá um dia
Brutal Mente



onírico



era um homem com asas que tinha esses cachos
na cabeça que as borboletas gostam e uns silêncios
feitos de trevos e feitiços e um cheiro de anis
com hortelã e baunilha e era ele quem penetrava
em meus sonhos com flautas e gaitas e saxofones
e me deitava em tapetes mágicos orientando meus sentidos


e me envolvia num latente surrealismo com alecrim
e mormaços e incensos numa mistura orgânica de dunas
e cataventos e caçava minhas palavras em açudes e salinas
com o corpo agridoce ou melado e com sua boca que tinha
contato com a cana e me fazia magenta e absurdamente
doce quando mesclava meu vestido vermelho
com algum verde de grama


à sombra de um impressionismo me revelava entre algumas
folhas de parreira e me falava de camas e taturanas e pimentas
e caquis e chocolates e mangas e outras coisas ordinárias
que eu imaginava em paraisos lúdicos cheios de deuses escarlates
e vagabundos enquanto ele refletia de improviso a minh’alma
misturada ao barro e ao fogo debaixo de um toró repentino


e aquilo nos fazia rir com um lirismo próximo à loucura
de comer certas flores exóticas e de fazer outros rituais
para os instantes que nos habitavam os precipícios
preferidos e no ponto mais fixo de mim ele circulava felino
sem me deixar a mais inútil alternativa para fugir


e então dançávamos no solo de uma música telúrica
e nos entrelaçávamos alucinados até a memória fugaz
do momento em que abri os olhos e esqueci a poesia
lá onde ele permanece sonhado



somos a bomba (anti-acordo ortográfico)



em idéias teias grassas
nossas palavras arranham aranhas
da língua em estado
de sítio sem árvores
e nos arvoramos pelas raízes
inquietos até tirarmos o chapéu
de aba e poros imaginários
dos homens que comem letras sem sumo
sem cheiro e com sabor artificial


queremos a língua solta
na maior brasilidade de um samba
de fundo de quintal e clementinas
em pagodes de zecas subindo morros
e o fonema pleno e salgado
da brincriação rebelde e desestruturante


provocamos o colapso dos lapsos arcaicos
para que se quebrem os elos que aprisionam
a expressão em anéis
sem os dedos que procuram sentidos
no inexplorado...


[a estética contraditória e misteriosa
a revolução dos neologismos em outros passos]


e nós, os 3 do forte
de uma copacabana estendida por mim
além da baía e de outros horizontes
vamos desafiar todos os erros
para sermos como falamos e somos:
explosivos brasileiros






* "os 3 do forte" é uma referência à Revolta dos 18 do Forte de Copacabana. Os 3: eu, Fernando Cisco Zappa, o poetaço que acredita na luta com as palavras, e Rodrigo M. Freire, o rebelde por natureza, mas grande, grande, grande escritor.

Olhos como mel

[Marcelo Novaes]


Você não sabia que esses olhos
eram meus, eram claros, eram mel.
Nem que a voz soava violoncelo,
próximo ao Natal.


E que eu deixaria seu corpo doído
por uma semana, na única noite de cio
passada no chão.


Você não sabia que, no meu quarto,
a luz tremeluzia. E que meu respirar
comportava tal silêncio: desses que só
pode dar água corrente, o sol nascente,
uma manhã no Chile.


Você não sabia que cabia no existir
tal densidade: bem maior que o tônus
muscular colado aos ossos. Por você
tudo apalpado. E nem conhecia o amor
que era canto e língua procurando cada
canto e tudo que os outros haviam deixado
intacto. Amar amor gentil, antes e depois do
ato.


Você não sabia o outro nome, pelo qual
te chamaria, com insistência, a certa altura:
nome lindo de se colocar aqui agora. Aquele
que um dia - intuo muito bem porque -, você
enterrara. Mas eu te sei nome e sobrenome,
também lá e então, e desde sempre. E saberei
cem jeitos diferentes de te chamar, Adrianna.




* Publicado no Balaio Porreta 1986 nº 2558