toda sorte de inventos

ao amigo que é o "extrato da sua abstração extrema
extravio extraditado na fronteira da invenção":
fernando cisco zappa




fernando inventa coisas
e conversa com elas
converte palavras
em pedras de rios
igarapés e florestas
chuvas e sóis


sempre o imagino
fazendo amor com a terra
ou com uma árvore
e sinto que ele é
incontestavelmente
antigo e indefinível
um menino índio
de alma cigana e africana
com toda gama de cores
que o matizam


[porque para mim
ele é colorido]


uma ruptura
dessas que abrem o peito
e que explodem sentidos


e depois ele ri
e subitamente quebra a rotina
sem rimas
quebra a expectativa
dos versos
e renova o silêncio
que se instaura em mim



quase um tango



que coisa mais latina
me chegar assim com tangos
com esse orange walking
com pratas e besos roubados
e com esse ar borgeano


que coisa mais ladina
esse teu olhar bajamar
que saca la paz dos meus dias
y me quita la noche y el sueño
quando me ofereces coca
e bebes um vinho chileno


que coisa mais romântica
quando me atacas na cama
antes fria e deserta
e me declamas um pablo
só para ter-me caliente


[sale un aroma de jazmín mojado
por el sudor, un ácido relente]


y yo pronuncio tu nombre
entre embargos y cochabamba
si no eres fidel yo te castro
encuanto enciendes um charuto
de havana







na voz de
Mercedes Lorenzo

para uma confissão

para Mercedes Lorenzo


que a palavra secreta se apresente,
aquela que me olha de longe
que me entende e me espreita,
por onde quer que eu ande...


aquela que sabe dos meus horários
e de tudo que coloco sob pedras,
debaixo do tapete, atrás das portas
e dos meus gestos corpóreos


aquela que encontra minhas identidades
guardadas a sete chaves na gaveta
cheia de poemas sibilinos


- a palavra-chave, testemunha,
aquela que me aponta, me acusa...


quando ela se declarar,
eu assino.



pálida



meus versos são vermelhos
e me chegam repentinos
aos olhos, às mãos, à boca


extenuam num instante
meus dilatados sentidos
e me absorvem inteira
ou despedaçada



para uma dança



gostaria de um homem verde
menino ainda
ou um homem verde e rosa
de alma mangueira


um homem que me tirasse
para as danças da chuva e do sol
e que gostasse de natureza


[mas tanto o sol como a chuva
mesmo sem esse homem
chegam a mim com tamanha beleza]


gostaria de um homem
para dançar
apenas






* Publicado no Balaio Porreta 1986 nº 2603

***** de língua: lambendo a poesia de mercedes lorenzo



Shlept



a língua bifurcada da serpente
prova dois gostos?
o que acontece
se eu lamber teu gesto?
gosto do susto
de pensar palavras salivas
incisivas in.surgentes
carnívoras
isso vai me inflorescendo
o resto



Mercedes Lorenzo





minha voz cariocando a shlept da mê:


* Publicado no Balaio Porreta 1986 nº 2564

olé



Ângulos vermelhos



Ângulos vermelhos
destacam o solo
flamenco do
violão,


o timbre do
flamenco.


E a bailarina está de
costas, a espanhola
ouvindo os arpejos.


Lá fora, voam os

passarinhos, em

ângulo

reto.



Marcelo Novaes






gitana



meus passos não te serão

leves

nem meus saltos


nem mesmo quando levito,

ou ergo as mãos, danço e canto

sem acompanhamento


pelo ângulo certo, porém,

verás meu coração nos abetos,

os pássaros rasgarem azuis

e amanhecerem os meus beijos

vermelhos




Adrianna Coelho




cálice e patena



talvez eu precise de você
a percorrer meu labirinto
sem novelo
a descobrir-me


de que você me possua
como quem faz
uma intinção


talvez eu precise perder
todos os sentidos
além dos cinco
e ser pagã


crer na indivisibilidade
e ser totalmente sua



sem ressalvas



eu não sabia que meu cabelo era agreste
e que refletiríamos em nossas íris
um ao outro – sobre o carpete –
e as cores dos crepúsculos
e das auroras...


nem sabia que poderia ter por horas
essa dança de águas nos olhos,
e esse sorriso na memória dos músculos
que me douraram a pele em nossa trança
de salivas e de silêncios...


e que me tornaria
ao mesmo tempo leve e densa,
com você profundamente dentro,
[em presença e ausência]
inteiro, unânime e múltiplo.






* Publicado no Balaio Porreta 1986 nº 2558