abscissa



o que me toca é a distância
e esse olhar mudo de retrato,
esse muro branco de dentes
de um sorriso concreto
flagrado como se fosse
um crime...


e esse gesto despojado de chaves
e de noites, sem eclipses
e sem apêndices, me redime
das palavras trancadas
nesse cofre surdo
com o segredo para novas cores
em um arco-íris exânime
e os mapas que me prometeram
levar para longe...


o que me toca é ponto equidistante
do que sou e do que sonho.



soneto para o desdito

Para Rodrigo M. Freire


Arranca-me de dentro a solidão,
a franca dor que me congela a alma
que mascarada de fingida calma
não revela mágoa nem aflição.


Ousa por mim ouvir a não-palavra,
resgata o gesto não insinuado,
desvenda meu coração grave e ávido
aprisionado nesta triste lavra.


Com verso profundo, forte e insurgente
livra-me do sofrimento silente,
derruba estas barreiras e chama-me.


Recobra-me esta emoção sepultada -
a verdade que em mim tenho encerrada.
Recria-me em vivo desejo e ama-me.



mergulho



na hora esquiva
das águas apurando
dias em ilhas alheias
ao sal me conservo
dentro dos ossos
experimentando
o nascimento de asas
translúcidas
e voo pássaro


o bico aponta
meu peito
e ronda meu corpo
mergulhado
em acasos
de peixes e sargaços


e eu
raramente em mim
concha adversa
me fecho
nessa mudez
que pesca o verso






* Publicado no blog Novidades & Velharias

nimbo



na minha terra
encharcada


há resquícios de chuva
nas fendas, pétalas
e corolas


até quando as gotas
cairão das folhas
e as pedras ficarão
úmidas?


quando é que a palavra
estia?






* Publicado no Balaio Porreta 1986 nº 2547

planisfério



ao me olhar no espelho
plano
há uma imagem – minha –
que flutua
que não se pensa:
plana
leve como pluma
há uma dimensão – minha –
não refletida
que me absorve e me
adivinha
plena



camelos e outras esferas (medo medo medo mídia mídia)



ali mentes alinham-se
e alimentam-se
de contingentes rumores
de contidas gentes que vivem sós
(agrupadamente)


tabloides são todos
que todos se mentem sob as antenas


sobre nossas cabeças
e sobre o cimento incerto
alguma coisa anda desordenadamente
dando de comer às feras


e nesse ato de DomEsticar
]eENCOLHERoQueSomos[
maldosamente molda-nos a mente
e a noosfera


e nos ferirá um dia
Brutal Mente



onírico



era um homem com asas que tinha esses cachos
na cabeça que as borboletas gostam e uns silêncios
feitos de trevos e feitiços e um cheiro de anis
com hortelã e baunilha e era ele quem penetrava
em meus sonhos com flautas e gaitas e saxofones
e me deitava em tapetes mágicos orientando meus sentidos


e me envolvia num latente surrealismo com alecrim
e mormaços e incensos numa mistura orgânica de dunas
e cataventos e caçava minhas palavras em açudes e salinas
com o corpo agridoce ou melado e com sua boca que tinha
contato com a cana e me fazia magenta e absurdamente
doce quando mesclava meu vestido vermelho
com algum verde de grama


à sombra de um impressionismo me revelava entre algumas
folhas de parreira e me falava de camas e taturanas e pimentas
e caquis e chocolates e mangas e outras coisas ordinárias
que eu imaginava em paraisos lúdicos cheios de deuses escarlates
e vagabundos enquanto ele refletia de improviso a minh’alma
misturada ao barro e ao fogo debaixo de um toró repentino


e aquilo nos fazia rir com um lirismo próximo à loucura
de comer certas flores exóticas e de fazer outros rituais
para os instantes que nos habitavam os precipícios
preferidos e no ponto mais fixo de mim ele circulava felino
sem me deixar a mais inútil alternativa para fugir


e então dançávamos no solo de uma música telúrica
e nos entrelaçávamos alucinados até a memória fugaz
do momento em que abri os olhos e esqueci a poesia
lá onde ele permanece sonhado



somos a bomba (anti-acordo ortográfico)



em idéias teias grassas
nossas palavras arranham aranhas
da língua em estado
de sítio sem árvores
e nos arvoramos pelas raízes
inquietos até tirarmos o chapéu
de aba e poros imaginários
dos homens que comem letras sem sumo
sem cheiro e com sabor artificial


queremos a língua solta
na maior brasilidade de um samba
de fundo de quintal e clementinas
em pagodes de zecas subindo morros
e o fonema pleno e salgado
da brincriação rebelde e desestruturante


provocamos o colapso dos lapsos arcaicos
para que se quebrem os elos que aprisionam
a expressão em anéis
sem os dedos que procuram sentidos
no inexplorado...


[a estética contraditória e misteriosa
a revolução dos neologismos em outros passos]


e nós, os 3 do forte
de uma copacabana estendida por mim
além da baía e de outros horizontes
vamos desafiar todos os erros
para sermos como falamos e somos:
explosivos brasileiros






* "os 3 do forte" é uma referência à Revolta dos 18 do Forte de Copacabana. Os 3: eu, Fernando Cisco Zappa, o poetaço que acredita na luta com as palavras, e Rodrigo M. Freire, o rebelde por natureza, mas grande, grande, grande escritor.

Olhos como mel

[Marcelo Novaes]


Você não sabia que esses olhos
eram meus, eram claros, eram mel.
Nem que a voz soava violoncelo,
próximo ao Natal.


E que eu deixaria seu corpo doído
por uma semana, na única noite de cio
passada no chão.


Você não sabia que, no meu quarto,
a luz tremeluzia. E que meu respirar
comportava tal silêncio: desses que só
pode dar água corrente, o sol nascente,
uma manhã no Chile.


Você não sabia que cabia no existir
tal densidade: bem maior que o tônus
muscular colado aos ossos. Por você
tudo apalpado. E nem conhecia o amor
que era canto e língua procurando cada
canto e tudo que os outros haviam deixado
intacto. Amar amor gentil, antes e depois do
ato.


Você não sabia o outro nome, pelo qual
te chamaria, com insistência, a certa altura:
nome lindo de se colocar aqui agora. Aquele
que um dia - intuo muito bem porque -, você
enterrara. Mas eu te sei nome e sobrenome,
também lá e então, e desde sempre. E saberei
cem jeitos diferentes de te chamar, Adrianna.




* Publicado no Balaio Porreta 1986 nº 2558