aspectos secretos de um ritual



me despe às cegas horas
do dia
e o vidro do relógio
arranha tanto quanto
me acariciam as tardes
de oásis

nunca inteiro quase se
faz felino e me acaricia
tanto quanto arranha
a minha vida

e despede-se às claras horas
do dia

muito prazer

tenho muitos dialetos e dias lentos
e nas desfronteiras de mim
há minas de ouro ou de bombas
– estou sempre por um fio
(cut the red line)
sou do tipo que diz não
e grita o sim
e nunca fui dada a tropeços:
caio de vez e com vontade
porque pode ser que eu aconteça
ou desapareça logo
quem sabe
sei que não tenho lógica
mas tenho esses dias lentos e esses dialetos
e você bem que podia me sacar de vez
e se atirar de cabeça
em mim e nos meus mistérios
e talvez você compreenda a minha língua
e compreender a língua
passa pelo reconhecimento do corpo
(a pele é uma fronteira que não separa línguas)
e antes que você desaconteça
e antes que eu desapareça
e antes que amanheça
vem me aprender logo
porque mesmo com meus dias lentos
dizem que noite adentro
o tempo voa

recíproca


de repente assustam-me
os teus destroços abandonados
à superfície dos meus olhos
rasos de água


vitralidade




tuas cinzas
areia e sais
unidos à minha fragilidade 

improvável engano mesopotâmio
em meus imprevistos
vitrificados

nas tuas mãos de oleiro
meu corpo moldado
em complexos ruídos

presos em tuas tramas de cobre
meus reflexos
derretidos

e o momento inexato
em que me entornas
teu líquido

é aquele em que me acreditas
na impossibilidade
do vidro


espectro




aquelas noites não
nos deixaram
para trás
mas sozinhos

sem os silêncios
comuns às estrelas
e aos lírios

e com todas
as minhas cores
misturadas aos teus
litígios


solstício


« a utopia está lá no horizonte »
                       eduardo galeano



prendo-me ao que se move
para retirar da dor
a monotonia

o que de mim se afasta
ou cai como fruto
ou flor


   por isso deixo-me
   levar a noite
   dentro

   que meus poemas
   são feitos de outonos
   memórias
   e esquecimentos


perfil



na parede morta
minha natureza toda
sem assinatura

saturada de azul
de um quase nu
vinho
púrpura
magenta

e de teu sol oblíquo
a emoldurar meu rosto
respingado de tinta



ocaso



ainda ouço
tuas conversas com
sombras e brumas

teus restos
de noites e teus dons
para abismos
em minhas comoções
 telúricas

teus silêncios ancorando
meus vazios e a
tua falta

ainda te espero
naquele cais que nos invade
a alma


reversos




meus tormentos ainda
persistem como peixes
   que sobem um rio

que não sabem dos
horizontes e da aflição
    nos portos

e não se importam
com o inaceitável sentido
   de todas  as dores

ou com a erosão
em  meus olhos embaçados
   de saudades

e no meio de tudo
continuo detenta
de cada uma de suas
   margens


risco



    arrisca em mim
    o que quebre
    o que grite

    o que desaninhe
    meu tigre e meu
        riso

    arranca o fôlego
        a raiz
            o juízo

    e deixa que o resto
        se precipite
   


legado



achei o jeito
de anoitecer os silêncios
 cheia de
    luas e lenhas

cais
naufrágios e dores

     teu esboço e tua
 ausência


fragmentos




esse olhar mudo
     de retrato

um muro branco de dentes
flagrado como se fosse
     um crime

o gesto despojado
de chaves e de noites
    sem eclipses

esse jeito de ser
tempestade
    e nenhum dique


          

fugidio



no meu percurso
também há a delicadeza
 de nuvens ilegíveis

 e onde meu desejo
se investiga

há lonjuras
          mãos
desvãos
           rubis

e o ar escasso
entre o não e um profundo
   sim